Relações governamentais: um caminho para a cidadania

Guilherme Santos*

            Sobre a cidadania, disse o escritor e cartunista Millôr Fernandes que “cidadão, num país em que não há nem sombra de cidadania, significa apenas cidade grande”. Com raízes no latim, a palavra civitas quer dizer cidade. Nesse sentido, a cidadania está relacionada não ao mero pertencimento a um espaço geográfico, mas principalmente ao direito de participar ativamente da vida que ali se organiza. Essencial à própria existência da democracia, assegura a todos um o direito de participar do processo político.

No Brasil, contudo, os obstáculos para o exercício da cidadania ainda são muitos, e não somente os de natureza social. Existe um abismo entre a sociedade e a política brasileira, em razão da sua complexidade, uma realidade que, convenhamos, não há reforma capaz de alterar. Isso porque há elementos no DNA da política que são muito diferentes daqueles que estruturam as organizações sociais e privadas. Como definiu Otto Von Bismarck, “a política não é uma ciência exata, mas uma arte”.

O problema é que, enquanto essa dinâmica da política é importante para a construção do consenso, seus ritos e processos nem sempre são compreendidos pelas organizações que precisam interagir com o Poder Público em prol de medidas assertivas, que impactem positivamente a sociedade e o mercado. Como superar essa distância e garantir maior sinergia entre o público e o privado?

A resposta a esse conflito não é nova, mas vem evoluindo nas últimas décadas sob muitos nomes: public affairs, relações institucionais ou relações governamentais, por exemplo. Essas expressões representam um campo de conhecimento em efervescência, cujo objeto é a construção de relacionamento entre organizações e o Estado, com foco na criação de canais para a formulação de políticas públicas eficazes. Por meio de uma gestão adequada na área de “relgov”, as organizações agregam valor à sua atividade, melhoram sua reputação, reduzem a imprevisibilidade e apresentam melhor argumentos relevantes ao processo decisório.

O leitor atento seguramente pode se perguntar: “mas isso não seria lobby”? A resposta: sim, isso também engloba o lobby, uma expressão controversa e de origem curiosa. Conta-se que no fim do Século XIX, o então presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant, costumava frequentar o salão, ou “lobby”, de entrada do hotel Willard para tomar conhaque e fumar charutos após o dia na Casa Branca. Ali, indivíduos que aguardavam o presidente para apresentar reivindicações teriam sido apelidados de “lobbyists”.

É verdade que ainda existe um estigma sobre a expressão “lobista” no Brasil, fruto principalmente da ação de indivíduos que nunca exerceram de fato essa profissão. O que as pessoas ainda pouco sabem é que: I) o verdadeiro lobby é feito de forma técnica, e é uma pequena etapa de um trabalho complexo e estratégico; II) existem empresas e profissionais sérios atuando nessa área pautados pela ética; e III) essa atividade é regulamentada na maior parte dos países desenvolvidos, conforme recomendação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O motivo da recomendação é simples: transparência reduz a corrupção e agrega valor. Por meio de boas técnicas de relações governamentais e institucionais, estabelece-se um canal importante e legítimo entre as organizações e o poder público, ajudando a aprimorar o debate pela transformação de demandas relevantes em políticas públicas interessantes ao país. Isso tudo às claras, sem negociações obscuras!

Essa tendência, vale lembrar, se conecta plenamente ao pensamento corporativo moderno. As organizações estão atentas ao conceito de Environmental, Social and Governance – ESG, fundamentado no impacto das suas ações sobre a sociedade, o meio ambiente e sua adequada governança. Para se atingir esses indicadores com efetividade, é necessário conectar com qualidade todos os atores envolvidos, em especial o Poder Público, em um ambiente moderno de relacionamento e compliance.

Eis aí um desafio para o Brasil: de um lado, a já reconhecida importância das relações governamentais para as organizações. Do outro, o estigma em torno da atividade. Para superá-lo, destaca-se o trabalho que vem sendo protagonizado pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais – ABRIG, entidade que congrega profissionais e empresas que exercem a atividade sob rígidos parâmetros disciplinares estabelecidos, por exemplo, pelo Foreign Corruption Practices Act – FCPA e pela Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013). Um exemplo desse trabalho é a edição da “Prática Recomendada ABNT PR 1001:2020 – Relações Institucionais e Governamentais (RIG)”, que parametrizou em 2020 orientações para o adequado exercício da atividade.

A ABRIG vem liderando as discussões em torno da regulamentação da atividade de relações governamentais no Brasil. A proposta, debatida há mais de 40 anos no Congresso, foi aprovada em 2022 pela Câmara dos Deputados após um bem construído parecer do relator, o deputado federal Lafayette de Andrada (Republicanos – MG), e agora está no Senado Federal como o PLS 2914/2022.  Quando aprovada, significará uma grande evolução rumo à transparência nas relações entre o público e o privado.

Até lá, continuaremos a verificar o crescimento desse setor, fortalecendo a construção de uma ponte necessária entre os formuladores de políticas públicas e as organizações sociais e privadas e, portanto, um caminho para melhorar o exercício da cidadania. Quem sabe esse progresso não nos ajude a cada vez menos relacionar o conceito de cidadão apenas ao tamanho de uma cidade? O futuro breve nos dirá!

* Diretor Executivo da Civitas Relgov, escritor e palestrante.

guilherme@civitasrelgov.com.br

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